Alguma Literatura

Alguma Literatura

sábado, 28 de janeiro de 2012

Palmo medido...



Palmo medido                                                                          I. Adiante, praça acossada.
com braço esticado
na altura dos olhos.

Valiosa
a linha misteriosa.
Céu e Terra em colóquio
cara a cara.

Qual o assunto?
Queixas dos homens?
Inveja do mar?

Voam                                                                                                    II.  Na praça, uns.
faces velozes
Voam.

Caóticas, as trilhas
sinuosas, as sinas.

Faces velozes
alagam horizonte possível.
O palmo; agora mais
largo.
Ala(r)gamento contido
em copo d’água.

Louro balanço                                                                               III. Uma. (Eu-mendigo).
passo decidido.

Quebra recompõe
quebra.

De onde vem essa fé na vida?
Essa convicção
de merecê-la,
de onde?

Se não lhe faz falta
tem um pouco pra mim,
por caridade?
Precisando tanto...

sábado, 21 de janeiro de 2012

Fique à vontade




Ali na esquina. Espaço. Talvez um metro quadrado, limites incertos, paredes translúcidas. Puro doméstico recato. Odores – suor, mijo, merda – domésticos. Gestos, os mais íntimos, conquistaram-no, palmo a palmo.
Ela tateia seu rosto. Os indicadores limpam sua pele. Afastam cabelo, barba. Localizado o cravo, usa os polegares. Olhos ausentes fitam ponto fixo. Sutil expressão sinaliza dor. Atenta, ela colhe as nuances. Para. Vê. Continua.
Ali. Microcosmo. O ambiente pede um “com licença”. “Fique à vontade”, diria ela. Ou ele. Ou ambos, em coro. 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Migalhas



Quando me ignoras
Quando preferes a sala vazia
À minha companhia
Abres, silencioso, cova
De esfarelada indiferença.

Ali, o amor,
Se ainda o tenho,
Vai se deitar.

Toda noite, com os olhos fechados, ele espera
Que lhe cubra
a última pá.

Mas – tão inábil –
Não sabes sequer
Desenganar
E cobre-me
Com tua ternura pouca, ou nenhuma.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Comércio




Próximo!
E mais um bombom, por favor.
Dá R$ 5,25. Teria 25 centavos?
Não.
Um, dois, três, quatro e setenta e cinco.
Obrigado.
De nada. Próximo!

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A minha visão...






A MINHA visão                                                                             1. O mundo sensível
é uma navalha
a audição, o tato,
paladar e olfato?
São n navalhas.

Percebo o mundo
ao seccioná-lo.
Minúsculas fatias.
Pedaços diáfanos
de um todo opaco.

AO CORTAR a fruta                                                                    2. Tarefa doméstica
entendo-lhe a fibra
noto-lhe a consistência
pelo punho que vibra
e o modo desse vibrar
enquanto desliza.

Ou, se descarrila,
noto a carne minha
e essa prova a faca
redundantemente.

É QUANDO uma lâmina                                                                         3. Síntese
ensimesmada.
É onde uma faca
em si enrolada.
n de navalha.

É quem o fio
escondido em si.
É porque espada
desembainhada.
n de navalha.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Outra Penélope



“...and the black arms of tall ships that stand
against the moon, their tale of distant nations.”
(James Joyce, A Portrait of the Artist as a Young Man)

λιμάνι

E despedida despe-a-ida
vela lassa – alva asa calva
lamúrias no cais ou
calar tonitruante ou
só o conoro marulho
discurso mudo.

ωκεανός

Amarado o velame vela-me pando
é o retransir o Reino
do esposo infiel
e pai de Polifemo.

ομίχλη

Onde, o relume? Sol de leite
- salvador de Enéias .
Náu nossa erra desorfada
Senda sáfara sinuosa amarga
Maremareada jornada

Ir-vagar-perder-achar-vir

αγάπη
Rubi os olhos esmeraldinos
Esperam.
Ela.
Tecem suas mãos mentiras cíclicas?
Acariciam amor visível, crível?
Aguardam figura elíptica?
Mar, medianeiro mar.


Homenagem a João Foti

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Tauromaquia






O paseo já tem início.
Passos firmes de herói
Olhadela ao precipício
Por mais que fugaz, corrói.
- E tu, fera, tens já medo?
- Não. O porvir desconheço.

O homem que empunha a lança
Destreza veloz: montada.
O animal fere e alcança
Prepara a faena aguardada.
- Touro, és forte, mas lento.
- Luto, mas golpeio o vento.

Altivo, o Toureiro a capa
Rubras asas. Inflam. Somem.
Hora esconde, hora destaca.
O Feroz só roça o homem.
- Touro, és acaso cego?
- Não. Miro, mas não acerto.

Bandarilheiro boçal
Empáfia. Som de fanfarras.
Adorna o belo animal
Ganhando vivas e palmas.
- Por que não gritas, oh Touro?
- Eu grito, mas não me ouço.

O Assassino, com a muleta,
Música ainda mais alta.
Parece varrer poeira
Que lhe caiu na ribalta.
- Quase feriste o inimigo:
- Cabecear não consigo!

O Animal ergue a espada
A tensão incha o instante.
E executa a estocada.
Touro ao chão, resfolegante.
- Touro, morres com hombridade.
- Sanguinária humanidade...

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Mulher enlutada




1. Dor nova
A viuvez. Dor ritual. O luto. O sofrimento ostensivo. Condolências. Pêsames. Sentimentos e pesares. Cartões e telegramas. Flores e cartas. Obituário. Mudança de estado. Também de vestuário. Sai o vermelho entra o negro. Mudança de comportamento. Sai a tagarelice entra o silêncio. Não necessariamente sofrido, mas sempre refletido e inundado de lembranças multicoloridas. Missas. Corpo presente. Sétimo dia. Trigésimo dia. Missa. Um ano. Finados. Com muito estardalhaço a alma se vai. “Segura na mão de Deus e vai”. E vai bastante encomendada e recomendada. Em criança, ela imaginava como se processariam, no céu, as intenções de uma missa. Havia visto professor bater na porta de seu pai pedindo emprego com carta de recomendação a tiracolo. E ao rezar por defunto, via, em sua mente, a alva figura de uma alma levantando a pesada aldraba do céu com uma mão e, com a outra, segurando várias cartinhas: uma para cada reza de criança. Outras maiores e mais pomposas: uma para cada missa. Com espanto, percebeu que a ideia que, depois de viúva, fazia de tão insondáveis mistérios em nada se distanciara daquela que formara quando mal saída dos cueiros. “Até que morte os separe”. A viuvez.


2. Dor antiga
A lembrança doloridazinha do ser amado já há décadas sepultado. A raspa última do tacho: aquelas lágrimas que, passada a convulsão maior da dor, esquecemo-nos de chorar. Essas retardatárias lágrimas – conta-gotas, pingos pingados de goteira – a gente nunca deixa de verter. Prantos silenciosos. Essas infinitesimais derradeiras lágrimas... Só existem – parece – para conservar ardente a labareda do pesar, estranha chama. É ela que vem apanhar a matriarca que, ali sentada, vê-se obrigada a culpar a poeira. Habita igual modo o coração dos órfãos – agridoce relembramento: é cicatriz, a bem dizer. Isso porque só a tem aquele que se curou de uma chaga, mas tê-la não é o mesmo que gozar de pele imaculada.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Bactericida




Um bicho vivo
Na louca-louça suja
O pão mordido
Que ele suga
Já foi mantega
Já foi delícia
Em boca negra
Nome Patrícia.

O bicho podre
Que sobre a pia
De gente pobre
Largo se delicia
É aristocrático
É bicho gordo
Um enigmático
Bicho asqueroso.

Um bicho imundo
Morre sua vida
O moribundo
Essa ferida (vida)
Herdou dum antigo
Seu precursor (análogo de pai)
Que fora vivo
Mas acabou.

Um bicho vivo. Vivo?
Será mais não.
Surpreendido
Por água e sabão
O dia último
De vida encontra
Foi seu verdugo
Reles esponja.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Dorme, anjo, dorme


              (Imagem: http://gn9ne.blogspot.com/2011/02/snake-face.html)



CASCAVEL na cama
Sob o pano branco
Seu silvo reclama
Num chiado pranto
A volta de um tempo

A COBRA no leito
Onde requebra oculta
No lado em que me deito
E indaga e consulta
Sobre o seu tempo.

COBRA sob a fronha
Com o mundo espantada
Esconde a peçonha
Por envergonhada
De estar nesse tempo.

SERPENTE encoberta
Foge da malícia
Que existe na terra
E me pede notícia
De um outro tempo.

Quando pôde ontem
Sussurrar manobras
Na orelha do homem
Que ouvia as cobras
Como aluno ao mestre.

Dorme, anjo, dorme
Guarda em teu sono
A inocência que
Se no mundo não mais há
Não é por culpa sua.

sábado, 7 de janeiro de 2012

É uma escolha do cliente





1. Queda guiada
Parábola rasga o azul

Voar em poltronas de chumbo
Aeromoças de um, mais pesado,
Chumbo. Asas, foices contra
Algodão.
Sou criança. Não sei como,
Mas espero chegar.
O capitão traz cidades
No bolso.

(A porta se abre.
-Papai!
Agarro suas pernas.
-Tem balinha?)

Senhores passageiros
Sejam bem vindos a ...
Tantos destinos
(Alguns doces, outros azedinhos,
Outros difíceis de abrir, outros
de comer no palito, outros não).

2. Cair em si
E se perder.
Vagar em si
E se frustrar.

Aquele eu que quis
O destino
Não o alcançará.
Será diverso o eu. O destino,
Diverso.
O que chega faz contas.
Crê que, no final,
Viajar não foi boa ideia.
Duvida da integridade de Natal.
Terá ela resistido, indaga.
Terão, enfim, invadido seus muros
(de dunas, rio e mar)?
Terão, os invasores, apagado
As páginas de minha particular
História?
O destino não o conhece.
Cão, outrora seu, a rosnar.

3. Serviço de atendimento
Ao consumidor.

-Senhor, não podemos devolver Seu dinheiro.
-É um absurdo!
-Ehh... Desculpe a intromissão...
-Sim.
-... mas talvez a cidade de sua infância...
-Era para lá que eu queria ter ido.
-... hoje só exista na sua imaginação.
-Um absurdo! Vocês perdem um cliente.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A Lâmina




À maneira de espelho
mostra-me seu lado
e minha face.

Para milagre
lambe a pedra
ressurreição.

Se represa
enterra-se em ventre
comportas se abrem.

Se garantia
esconde-se na cintura
pelo sim pelo não.

Como cão
morde os braços
de defesa ato.

Quando peixeira
em mãos de minha avó
limpa o peixe.

Quando faca
em mãos de minha mãe
despe o alho.

Quando canivete
em mão do pivete
descarna-me a carteira.