Alguma Literatura

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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

COMO PARAR O TEMPO


Tomás se voltou para Eduardo e perguntou:
- Ao pararmos um relógio pararíamos o tempo também?
- Claro que não!
- Não se apresse! Vamos refletir um pouco sobre isso.
- Tudo bem, embora eu ache que não poderemos evoluir muito a partir desse ponto... Então vamos começar determinando o real sentido da sua pergunta.
- É um ótimo começo.
- Você perguntou: “Ao pararmos um relógio pararíamos o tempo?” Pois bem, creio que as palavras-chaves aí são “relógio” e “tempo”.
- Já eu, Eduardo, acho que o essencial é definir o que é estar parado.
- Vamos por esse caminho então.
- Você concordaria que estar parado no espaço é o mesmo que não mudar de posição no espaço?
- Sim, parece justo.
- E que se quisermos estabelecer um conceito mais amplo para o que é estar parado devemos nos apegar à ideia de mudança?
- Como assim?
- O que proponho é que, de modo geral, “parado” é sinônimo de “aquilo que não muda”. Desse modo, estar parado no espaço é não mudar sua posição no espaço e estar parado no tempo é não mudar sua posição no tempo.
- Parece correto. Embora a expressão “não mudar sua posição no tempo” pareça confusa por misturar a noção de espaço com a noção de tempo. Creio que as expressões “posição no tempo” ou “lugar no tempo” não significam nada.
- Ainda assim elas são úteis.
- Creio que são mais confusas do que úteis, dado que podem ser substituídas por expressões como “momento” ou “época”. Mas, de qualquer modo, sua questão enfrenta novos obstáculos. Pois, dado o seu conceito para o que é estar parado, a rigor, a própria noção de relógio parado seria inviável no mundo real. Isso porque embora os ponteiros não mudem de posição, o material utilizado na fabricação do relógio jamais parará de mudar: o metal oxidará, o plástico ressecará, o vidro quebrará etc.
- Percebo. Ainda assim creio que podemos superar esse obstáculo.
- Como?
- Basta que consideremos um relógio infinito. Feito de materiais insuscetíveis de deterioração.
- Trata-se de uma abstração!
- É possível que se trate de uma abstração, mas imaginemos um.
- Certo.
- Um relógio infinito parado pára o tempo?
- Continuo respondendo que não. Qual é sua resposta para essa pergunta?
- Minha resposta é sim.
- Mas é impossível, Tomás! A própria ideia de que o tempo parou (mesmo que seja por poucos segundos) não faz sentido. Ora, tivesse parado mesmo, não seria possível medir a duração desse repouso! Não seria contraditório dizer que um relógio infinito parado pára o tempo se um observador do fenômeno continua a envelhecer e a mudar a despeito de o relógio estar parado?
- Mas a contradição é apenas aparente. É que tudo que muda (seja um átomo radioativo, um vulcão, um relógio ou um homem) cria, com a mudança, o tempo ao seu redor. Dizendo de outro modo: só aquilo que muda pode existir no tempo.
- Concordo que o requisito para que algo exista no tempo é que esse algo mude. Mas não concordo que a mudança dos seres e objetos gere o tempo ao seu redor. Essa ideia insinua que cada ser e cada objeto possui o seu próprio tempo...
- Isso mesmo.
- E que não existe um tempo absoluto...
- Sim.
- Não concordo com você nesse ponto, mas prossiga.
- A velocidade no tempo de tudo que muda é proporcional à velocidade de sua mudança. Como existem materiais e pessoas que mudam muito lentamente e outros que mudam rapidamente, temos que o tempo não flui na mesma velocidade em todas as partes do universo. Dito isso, volto à minha ideia inicial, a qual reformulo: Quando um relógio infinito pára, também o seu tempo pára.
- O que parece correto, desde que se admita, hipoteticamente, a existência de um relógio infinito e desde que se conceba o tempo não como algo absoluto, mas relativo. Mas esses dois problemas: o prático, que é a impossibilidade de que exista um relógio infinito, e o conceitual, a respeito do conceito de tempo, parecem-me intransponíveis.
- Então você não vê qualquer incoerência interna no meu argumento e acha que, uma vez que sejam superados esses dois óbices, quem quer que pense sobre o assunto estará forçado a aceitar que ao se parar um relógio infinito paramos também o seu tempo?
- Sim.
- Então veja como já evoluímos bastante desde a minha primeira pergunta.
- Saímos do lugar, mas não evoluímos. Apenas andamos em círculos.
- Como os ponteiros de um relógio?
- Sim, Tomás, como os ponteiros de um relógio.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O PSOLISMO E A SEGURANÇA PÚBLICA


“A intelligentsia tem tratado as conclusões de sua visão como axiomas a serem seguidos, em vez de hipóteses a serem testadas.
Alguns membros da intelligentsia tratam a própria realidade como subjetiva e ilusória, colocando, portanto, os modismos e as tendências intelectuais atuais no mesmo plano dos conhecimentos comprovados e da sabedoria destilada pela experiência de gerações.”
(Thomas Sowell. Os intelectuais e a sociedade)

Os psolistas proclamaram, em seu programa de governo[i], que “as altas taxas de criminalidade brasileiras confirmam que essa política de encarceramento em massa não contribui para a redução da criminalidade”. Como argumento a amparar essa tese, aduziram que “apesar do aumento da população carcerária, há também um crescimento das taxas de homicídio no Brasil” e que “o Brasil tem a 3ª maior população carcerária do mundo (CNJ/2014)”. Também propuseram “fortalecer e ampliar a política nacional de controle de armas e munições” como uma forma de reduzir a taxa de homicídios.
Aqui, analisaremos essas propostas e investigaremos o que o programa de governo do PSOL tem a nos dizer sobre o próprio psolismo.

1.  POR UM MUNDO SEM PRISÕES

Em 2014 o CNJ publicou um “Novo Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil[ii]”. Ali está dito que, com 567.655 detentos, o Brasil possui a 4ª maior população carcerária do mundo. Na sequência, é apresentado um outro ranking mostrando que se computássemos os brasileiros em prisão domiciliar, o Brasil somaria 715.655 e ultrapassaria a Rússia, ficando, assim em 3º lugar. Mas na medida em que presos domiciliares não compõem a população carcerária, temos que não é verdade que o Brasil tem a 3ª maior população carcerária do mundo.
De qualquer forma, do fato de o Brasil possuir a 4ª maior população carcerária do mundo em números absolutos de detentos não decorre que “as altas taxas de criminalidade brasileiras confirmam que essa política de encarceramento em massa não contribui para a redução da criminalidade”.
Ora, sendo o Brasil o 5º país mais populoso do mundo, é natural que ele tenha a 4ª maior população carcerária. Como é natural que ele seja o 4º ou 5º país com maior número de canhotos; o 4º ou 5º com maior número de mulheres; o 4º ou 5º com maior número de pessoas que têm como cor favorita o amarelo e etc. O dado relevante não é, portanto, o número absoluto de detentos, mas o proporcional (detentos por 100 mil habitantes). Ao considerarmos esse número, veremos que de acordo com o ICPS[iii] o Brasil é apenas o 36º país com maior taxa de detentos. Mas também desse fato não decorre aquela conclusão.
E mais: a conclusão proclamada não encontra amparo na realidade brasileira. Nesse país, na verdade, constata-se uma clara correlação, nos estados, entre o aumento da taxa de encarcerados e a redução da taxa de homicídios. Vejamos.
Das 10 unidades federadas com maior taxa de encarcerados, 9 estão entre os 10 estados nos quais as taxas de homicídio mais diminuíram ou menos cresceram entre 2002 e 2012.
E, por outro lado, 7 das 10 unidades federadas com menor taxa de encarcerados estão entre os 10 estados nos quais houve um maior aumento das taxas de homicídio.

10 UF COM MAIOR TAXA DE DETENTOS
(Fonte: Anuário brasileiro de segurança pública[iv]. 2014. P. 64)
10 UF COM MAIOR DIMINUIÇÃO OU MENOR CRESCIMENTO DA TAXA DE HOMICÍDIO
(Fonte: Mapa da violência[v]. 2014. P. 38)
UF
TAXA
UF
VARIAÇÃO
AC
796,2
SP
-60,3%
MS
677,9
RJ
-50,0%
RO
642,7
PE
-32,3%
SP
630,8
RO
-22,3%
DF
594,5
MS
-16,4%
ES
525,6
ES
-7,6%
MT
494,8
MT
-7,1%
AP
476,5
RR
+1,4%
PE
469,9
AP
+2,5%
RR
468,5
AC
+7,1%
  



10 UF COM MENOR TAXA DE DETENTOS
(Fonte: Anuário brasileiro de segurança pública. 2014. P. 64)
10 UF COM MAIOR CRESCIMENTO DA TAXA DE HOMICÍDIO
(Fonte: Mapa da violência. 2014. P. 38)
UF
TAXA
UF
VARIAÇÃO
PI
135,4
RN
229,1%
BA
150,2
BA
221,6%
MA
150,5
MA
162,4%
AL
222,4
CE
136,7%
PA
231,6
PB
130,2%
RN
242,0
PA
126,9%
GO
258,1
AM
112,2%
RJ
290,4
AL
88,7%
TO
291,0
GO
80,9%
SE
296,6
TO
75,5%

Então, em face desses dados podemos concluir que, no Brasil, a evolução das taxas de detentos e homicídios nos estados demonstra que o encarceramento de pessoas que cometeram crimes tem contribuído sim para a redução da criminalidade.

2 .  POR UM MUNDO SEM ARMAS

O que é “controle de armas e munições”? Quando um ativista desarmamentista usa essa expressão ele não está se referindo apenas ao combate ao tráfico de armas ilegais. Os desarmamentistas no mundo todo almejam também, e principalmente, por uma redução do número de armas em circulação, o que passa por uma restrição do porte e da posse de armas legais. A ideia por traz disso é a de que as armas são a causa da violência, e não as pessoas que as usam.
O problema dessa ideia é que ela está equivocada.
Diversos levantamentos de dados apontam que “não há relação direta entre porte de armas e violência – até porque criminosos não usam armas legais[vi]”. Em 2011, por exemplo, os cinco estados mais armados do país (Acre, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina e Mato Grosso) responderam por apenas 9% dos homicídios[vii].
Então, restringir o porte de armas legais simplesmente não diminui o número de homicídios. Mas pelo contrário, se esse porte for concedido a agentes públicos bem treinados (como guardas municipais, por exemplo) é provável que haja uma queda do número de homicídios, na medida em que a presença física de agentes públicos armados inibe a ação de criminosos.

3 .  1.612.186 VÍTIMAS DE MAIS UM ENGODO IDEOLÓGICO-REVOLUCIONÁRIO

Mas como um discurso tão inconsistente nesse particular (falamos apenas de dois temas referentes à segurança pública) pôde seduzir tantos brasileiros nas últimas eleições (o partido angariou mais de um milhão e meio de votos em 2014)?
Eis a minha hipótese: para muitos eleitores do PSOL, a atratividade desse partido está na sua “pureza ideológica”. Esse partido conquistou, penso, o voto de eleitores convictos de que o problema do PT é ele não ser suficientemente esquerdista, ou, ao longo dos anos, ter perdido o seu viés ideológico, cedendo demais, negociando demais, fazendo política demais. Boa parte do eleitorado psolista, aparentemente, não quer a política (que é a arte do possível), mas a revolução (a busca do impossível). E a mentalidade revolucionária, por definição, repudia a tradição ao mesmo tempo em que propõe fórmulas nunca antes testadas que conduziriam a um “mundo melhor”. O revolucionário, portanto, é alguém que compra um punhado de dogmas.
No caso da segurança pública, um dos dogmas é o seguinte: “Um mundo sem presídios nos trará um mundo sem crimes”. O objetivo último de esvaziar as prisões, diga-se, consta expressamente do programa de governo psolista: “Tudo isso visando um gradual esvaziamento das prisões”, é o que lá está escrito. Um outro dogma é o de que “Um mundo sem armas nos trará um mundo sem crimes”
Como se a abertura, nesse exato segundo, de todas as celas do Brasil ou a destruição de todas as armas produzissem o efeito imediato de reduzir a criminalidade. Mas essas hipóteses, como visto, não encontram amparo na realidade brasileira. Elas tampouco se harmonizam com o mais rasteiro senso comum advindo da experiência mundana que diz: “Se aqueles que cometem crimes estiverem soltos, mais crimes serão cometidos” e “Se aqueles que cometem crimes forem os únicos que possuem armas, mais crimes serão cometidos”.
Mas é claro que perspectivas revolucionárias, como a psolista, não possuem compromissos seja com os dados da realidade, seja com a experiência acumulada pelas gerações passadas.
O revolucionário, ávido pela construção de um “Mundo melhor”, só está comprometido com a própria revolução. Suas ações, ideias e propostas – ele entende – não podem ser julgadas analisadas ou discutidas em confronto com os dados do mundo real. Seus ideais são tão puros, suas motivações tão justas e elevadas, que o único tribunal apto a julgá-lo, delira, é o da posteridade.
Por isso, creio que só poderemos compreender bem a mente dos psolistas se considerarmos que quando eles dizem que o modo de se reduzir a criminalidade é, dentre outras coisas, reduzindo a taxa de encarcerados; eles não estão propondo uma hipótese a ser testada, mas proclamando, como já dito, um dogma, um axioma, uma verdade de tal modo absoluta e arrebatadora que prescinde de qualquer demonstração empírica. Aqueles de coração puro a aceitarão. Já aqueles comprometidos com a manutenção dos privilégios das classes dominantes se levantarão contra ela. Sim, isso mesmo! Estamos diante da boa e velha luta do bem contra o mal. Em suma, o revolucionário se julga um ser superior moralmente.
Outra observação que pode nos ajudar a entender a mente do psolista é a seguinte. Para ele não existe qualquer coisa que possa ser chamada de realidade objetiva. O que existem são versões: diversas percepções subjetivas de uma dada realidade. Percepções essas, é claro, comprometidas com certos interesses de classe.
Ceticismo extremo quanto aos fatos e absoluta credulidade quanto à superioridade dos seus próprios valores. Essa é uma combinação perigosa, na medida em que predispõe as pessoas a seguirem líderes carismáticos mesmo diante de indícios, evidências ou até mesmo provas a apontarem os equívocos de suas ideias ou ações. “Ora, o líder é bom e justo. Esse dado é incontestável!” (aí está a credulidade) “Portanto, essas acusações e críticas só podem ser intriga da oposição embasada em uma triagem maliciosa e tendenciosa de certos fatos!” (aí está o ceticismo).
Eleitores do PSOL, a cura para os erros da ideologia não está em mais ideologia (de esquerda ou de direita), mas na sua negação. E, por fim, para termos um mundo sem presídios e sem armas, precisamos ter, antes, um mundo sem crimes; e não o contrário.