Alguma Literatura

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sábado, 17 de novembro de 2018

Variação sobre o jovem rico


§ Será que ninguém vê esse fogo que se espalhou e quer consumir casas, árvores, carros e postes? Não enxergam que ele é dado a apagar as palavras dos livros, a emudecer o choro dos bebês, as gargalhadas das crianças e o canto dos bêbados? Ninguém terá percebido que ele tem predileção por arrebatar, mãos quentes e ligeiras, o cenho franzido das mães, a timidez da primeira troca de olhares dos namorados, o silêncio constrangedor das reuniões em família e mesmo os minutos de atraso do mais pontual dos funcionários da loja de departamento? Ou que ele quer converter em cinzas o "boa noite" no elevador, o "tudo bem" na portaria e o "como vai" na esquina?
§ Ontem, não resisti e perguntei à primeira pessoa que encontrei: “Você não vê?” Enquanto nos abraçávamos, ela sussurrou entre lágrimas algumas palavras na língua dos sonâmbulos que só podem ser traduzidas como “Sim, eu vejo”. “Entreguemos – ela prosseguiu – tudo a ele. Sim, pois ele não aceita nada pela metade, e mesmo antes de nascermos já ardia sem se consumir e se espalhava sem se dividir”.
§ Eu concordei, mas com toda serenidade de que dispunha, ponderei que tinha horário marcado com o médico, uma lista de compras e dois boletos a pagar.