Alguma Literatura

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quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Filho da minha mãe

 



Quando via, em clínicas médicas, adultos acompanhando pais idosos e notava, pelo tom da voz do filho, pelo modo como eles conduziam e controlavam o idoso, ou até mesmo pela contida (ou nem tanto) irritação com a demora e as deficiências do serviço, irritação essa que comumente acabava transbordando e respingando no idoso, quando notava, repito, por esses e outros indícios que o filho se enxergava como um pai do seu pai, duas sensações me ocorriam: primeiro, eu me sentia mal pelo filho, porque entendia que a situação de quem é pai do próprio pai não é muito diferente da do órfão. E depois, eu me sentia feliz por nunca ter sido chamado pela doença ou coisa parecida a assumir o ingrato ofício de ser um pai para o meu pai ou para minha mãe.

Ah, minha mãe! Tenho tido a felicidade de não a ver decair e minguar nas garras aquilinas da senilidade. Isso, no entanto, é apenas metade da explicação para o fato de eu continuar sendo, com o perdão da redundância, filho da minha mãe. A outra parte da explicação é a seguinte: minha mãe é uma pessoa especialmente sábia. Não estou falando que ela é esperta, como os mais sagazes dos homens de negócios; ou que ela é uma fonte enciclopédica de fatos, datas e nomes, como os mais inteligentinhos dos menininhos que se sentam na primeira fileira da sala e que, com prontidão, respondem qual é a capital da Dinamarca ou conjugam verbos em latim (minha mãe, por sinal, tem horror a criancinhas sabichonas); não. Minha mãe é sábia. Como toda pessoa sábia, ela é irritantemente humilde e elegantemente discreta. Humilde, porque a sabedoria começa com um autoconhecimento, e quem conhece a si mesmo, compreende seus limites e insuficiências. Quem, ao espelho, tal como os “príncipes” do Poema em linha reta, só é capaz de contar virtudes, claramente precisa de um espelho novo. E a sabedoria é discreta com elegância, porque ela não decide, de antemão, esconder-se timidamente como o pusilânime, ou mostra-se espalhafatosamente como o exibicionista. A sabedoria simplesmente quer acertar. E, por isso mesmo, às vezes vai aparecer; e às vezes não. E ao aparecer, não se pavoneia; ao esconder-se, não rasteja.

Ah, minha mãe! 1,45m de sabedoria e sensatez. Nunca tive, ou pretendi ter, qualquer ascendência sobre minha mãe. Não lhe dou conselhos, mas os peço. Certa vez, uma irmã, perto dos seus 25 anos, perguntara-lhe: “Será que eu já sou adulta?”; “Já que você pergunta, tudo indica que não”. Quando estávamos em idade escolar, era comum termos diálogos como o seguinte: “Mãe, o que é supérfluo?”; “Pegue aqui o dicionário. Procure e descubra”. Ou, no supermercado: “Mãe, como se escolhe maçã?” “Você já sabe escolher!”; “Sei?”; “Você escolhe para comer?”; “Escolho”; “É a mesma coisa. Você comeria essa aqui?” – pegou uma maçã feia que já estava no saco – “Não!”; “Então tire do saco”.

Em um dos seus livros, William Douglas sugere que nas questões discursivas de concursos públicos da área jurídica o candidato tenha em mente “cinco mulheres”: a constituição, a lei, a doutrina (é assim como, no meio jurídico, de modo cafona, designamos a literatura técnica especializada), a jurisprudência e, para a surpresa do leitor, “a sua mãe”. A ideia é garantir que a resposta desenvolva sua argumentação a partir das normas pertinentes, do parecer dos especialistas e das decisões dos tribunais, mas sem perder de vista a opinião que uma pessoa sensata, mas que não é da área, teria a respeito do assunto. Afinal, se a conclusão a que o candidato chegou vier a se afastar muito do senso comum, algo a mais deverá ser dito, nem que seja para “convencer sua mãe” a respeito do acerto da solução proposta. Nunca tive dificuldades para fazer esse exercício, que ponho em prática até hoje no trabalho. Quando me deparo com problemas intrincados de direito, costumo arrematar o estudo me perguntando: o que minha mãe pensaria disso tudo?

“A injeção é assim; dói um pouquinho, mas quando você acha que vai doer mais, já acabou”. Assim ela me preparou para minha primeira injeção, ilustrando a explicação com um leve beliscão. Como resultado, nunca tive qualquer problema com agulhas. Vejo injeções como pacotes de dor. É verdade que alguns podem ser maiores do que outros (benzetacil entra rasgando!), mas todos eles têm um começo, um meio e um fim. Desde essas instruções, passei a ver uma injeção como uma realidade sensorial e não como uma realidade física. Creio que as pessoas que têm medo de agulhas estão fixadas na chocante realidade física da injeção: a de que um objeto mais denso do que nossa carne, entrará no nosso corpo do mesmo modo como uma faca quente corta a manteiga. Algumas poucas palavras acompanhadas por um beliscão me livraram desse problema para o resto da vida.

Compreendi a gravidade do seu quadro clínico ao ver a expressão de dor no seu rosto ao enfrentar a agulha que injetou o contraste necessário à realização da tomografia.

“Amanhã por essa hora, tudo terá terminado”. Era o que me dizia ao me ver aflito por ter que envidar esforços na realização de uma tarefa dura e cansativa. Hoje entendo que nesses momentos de tensão ou de desconforto, todo o incômodo derivava de um excesso de presente. E esse excesso de presente amplificava, na minha mente, a dor que então sentia. O raciocínio, então, acabava sendo o seguinte: “Se é difícil agora, então em poucas horas será insuportável, e depois de um dia, será meu fim”. No entanto, todos que realizaram feitos difíceis (desde correr uma maratona até escrever um livro) podem garantir que após o ápice do sofrimento se segue uma espécie de platô no qual, por força de uma vontade obstinada, poderemos abstrair todos os incômodos para seguir perseverando com o propósito, e que ao final, com a conclusão da tarefa, virá uma grande satisfação. Era esse prêmio, que não está no hoje, mas no amanhã, que minha mãe colocava diante dos meus olhos ao dizer que em um dia (uma semana ou um mês) tudo estaria terminado. E não sendo dado, ao menos não naturalmente, a adiar as recompensas (sou muito mais parecido com a cigarra do que com a formiga da fábula), compreendo que precisava, e que preciso, ser lembrado constantemente do prêmio reservado aos que perseveram.

Faz parte da sabedoria da minha mãe não tratar os filhos com igualdade. Seus filhos somos três: uma sanguínea, uma colérica e um de temperamento melancólico. Como dar aos três os mesmos conselhos? A única igualdade que observo é uma igualdade no amor e nos elogios. E nesse ponto, creio que não falo só da minha mãe, mas de todas elas. No geral, é muito mais fácil conseguirmos um elogio de um amigo, ou até mesmo de um mero conhecido, do que de nossa mãe, que mesmo nos amando por aquilo que nós somos, nunca perde de vista tudo aquilo que poderemos ser, se nos empenharmos mais. Além disso, dificilmente um filho se julgará o preferido. O mais amado, para cada um dos rebentos, é sempre outro. O que mostra a prodigalidade com que a mãe distribui o amor entre os seus. É tanto amor, que cada um dos irmãos tem motivos para invejar os demais. Elogios pagos com centavos; amor, com bilhões.

Sou filho da minha mãe. E nem a morte poderá desfazer esse vínculo. A morte? O que minha mãe pensa da morte? Nunca chegamos a ter uma conversa filosófica e densa sobre a finitude humana. Nunca, com exceção do dia no qual ela completou 50 anos: 04-10-1995. Eu, então, um adolescente. De algum modo, a conversa chegou à seguinte constatação: provavelmente, ela não viveria mais 50 anos. Diante desse dado (ou dessa probabilidade), ela disse apenas que isso não a preocupava, pois o seu foco era o de viver cada dia. O desconforto de minha mãe levou-me a concluir que o tópico era especialmente difícil para ela. Lembro que, mesmo sendo uma exímia nadadora, minha mãe sempre tratou o mar com muito respeito. O que é compreensível. Afinal, existe algo de belo e, ao mesmo tempo, de terrível no oceano. Do alto da ladeira do sol, em um lance de vista, enxergamos algumas dezenas de Km3 de água; o suficiente para engolir pessoas, carros, casas, prédios, enfim, cidades inteiras. E quantos peixes, golfinhos, tubarões e baleias não se escondem ali? Pois bem, é possível que eu esteja prestes a vê-la mergulhar em outro oceano, igualmente terrível, embora menos opaco. Menos opaco, porque o mar esconde suas feras, muitas das quais jamais veremos, mas a morte não esconderá a lembrança das lágrimas que a vi derramar ao ouvir Assum Preto, o sambar fazendo biquinho, a indignação com a política, o sorriso fácil, o escândalo do espirro ou a alegria de ser seu filho.

E agora, sedada na UTI e com uma forma grave de COVID, no que a senhora estará pensando, mãe?

O que a senhora vê nos seus sonhos? Bem sei que sons ouvirá e que imagens verá, se as drogas lhe permitirem ouvir ou ver algo. Sons e imagens que lhe são familiares, depois de uma vida profissional dedicada aos pacientes. Assistindo a esse estranho filme cheio de cortes, a senhora deve se sentir como uma passageira sem qualquer controle sobre o destino ou percurso da viagem. Do lado de cá, os seus filhos também se sentem um pouco assim. Mas no que pensará? Eu sei o que a senhora quer: recuperar-se e voltar para casa. Sou testemunha da firmeza da sua vontade, do empenho disciplinado que dedica na execução das tarefas com as quais se comprometera. Mas isso não me basta para adivinhar seus pensamentos, que me parecem inalcançáveis. Eu já estive na sua posição. Já tive meus pensamentos, ou filhotes de pensamento, encapsulados por um feixe de sensações e vontades. Sensações e vontades que só podiam ecoar através do grito ancestral que é o choro. E a senhora me entendia. O bebê é um livro aberto para sua mãe. Hoje, não posso lê-la, mas confio nos intensivistas, na sua habilidade de lhe entregar aquilo que a senhora precisa, na ocasião e na dose que precisar. Do mesmo modo que a senhora esperou o despertar da consciência nos seus filhos, esses esperam, com o mesmo amor e a mesma paciência, o restabelecimento da sua.