Alguma Literatura

Alguma Literatura

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O vento em Natal




(Assusta
a criança assustadiça,
insone.
Arrebata os chapéus,
das cabeças.
Lança grãos de areia,
minúsculas navalhas,
na pele.
Entorta arbustos.
Derruba árvores.
Dá vida às dunas.
Arranca quadros das paredes.
Bate as portas).

-Quem derrubou o vaso?

-Foi o vento, mãe.

-Com uma bola?

sábado, 26 de novembro de 2011

Unhappy hour



Na sala de reuniões,
A rispidez cala as explicações
Sabe-se o que esperar:
Punho cerrado, cofre alado
Dentes à mostra, possíveis armas
Soco, trovão, na mesa
Foco milimétrico
Grito
Saliva incontida, projéteis no ar.
Na sala de reuniões,
Não há assentos para explicações
Para o sorvete, no estômago, sim.
A rispidez e os gritos dão lugar
Aos latidos e rosnados
Grunhidos e uivos.
-Vocês não tem nada a dizer?

Hesitante, minúscula burocrata
Ergue a mão, levitante, e alcança,
Em gesto de libertação,
O próprio céu, com ele,
estrelas e galáxias.
- Pois diga!
- O Sr. é um completíssimo idiota.

                                                                                                                                              

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Um nó lasso


Ela passou pela catraca e se sentou do meu lado. Nunca a vira antes. Sua pele parecia destacadamente morena contra o vestido, branco com tênues detalhes florais: pequenas pétalas verdes, azuis e amarelas. A cor da roupa, à força do contraste, faria sua pele mais morena do que de fato era? Só seria possível conhecer-lhe o tom da pele vendo-a nua? Como ela seria nua?
- Garoto, ela falou. Teriam meus olhos denunciado meus pensamentos? Creio que ruborizei.
- Sim, respondi fitando, mui gravemente, seus olhos. Perguntou-me se poderia ajuda-la e, ouvindo que sim, se estivesse ao meu alcance, pediu-me que refizesse o laço de suas costas. Assumi a tarefa. Não tinha, então, qualquer familiaridade com o gesto de despir, ainda que inocentemente, uma mulher. De imediato, lembrei-me da familiar ação de atar cadarços. Percebi, com a comparação, o quanto os meus andavam ásperos, sujos e fedidos.
-Tá bom assim? – Pode apertar mais. – Prontinho. – Obrigada!
Nada mais falamos.
Ela saltou antes de mim. Não voltaria a vê-la.
No ônibus, rememorei, três vezes e depois mais três, nosso breve encontro. Esforcei-me para guardar, em especial, cada detalhe daquele instante, daquela eternidade em que suas costas estiveram nuas.
Na escola, tão logo tive a oportunidade, virei-me para o João Vitor e, triunfante, joguei-lhe na cara:
-Você já viu uma mulher nua? Eu já!

domingo, 20 de novembro de 2011

Uma queda de moto


O motoqueiro se vê
não móvel, mas tão parado
que, sob si chega a crer
voa o asfalto afiado.

Mas o chão vem e o desperta
se é que esteve adormecido,
como faca, como seta
e rasga o frágil tecido.

Expõe da lã sua trama
da pele o seu colorido
e esfarela, sem mais drama,
o que veste e o que é vestido.

Enfim, pratica injustiça
contra o pobre embriagado
pois tira de quem precisa
tingindo-se de encarnado.
Se a agressão é o argumento
de quem não tem a razão;
seria, assim, o argumento,
a agressão do fraco, então?

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Madrugada de chuva

06:00 - Toca o despertador.

Ao abrir os olhos não podia suspeitar,
mas ele por mim já esperava.
Ao ter com a ducha e a ela dedicar
árias imaginárias, tampouco,
mas ele esperava.

Água. Para mim, um ritual
matinal.
Para ele, o pão que lhe infla
as invisíveis carnes.
Que o faz profundo.

Ao rabiscar no jornal, pobre de mim,
nunca poderia imaginar, mas ele,
de tocaia, aguardava.

Esperava como uma grávida
não espera o filho.
Esperava, qual jacaré, com seu sorriso
largo e obsceno.

07:32 - Toca o telefone.

-Escritório contábil, bom dia!
-Oi Mércia, sou eu, Caio.
-Bom dia Doutor.
-Diz pro Fagundes que vou atrasar. Caí num buraco.
O pneu já era!

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Post-it

Homem (soberbo, a um pedaço de papel):

-Amarelo escravo
que leva na face
amarela,
as lembranças tatuadas
do teu amo.
Lembranças que só vivem
em ti.
Tarefas que ninguém quer
cumprir.
Distraído, trilhas o mesmo caminho
dos teus irmãos de papel que,
em fila rumo à destruição,
acumulam-se em cestos,
amassados em bolotas.

Papel (soberbo, a um pedaço de homem):


-Amarelo escravo
que leva na face
amarela,
as rugas que ganhaste
do tempo.
Tua vida é carregar
sonhos
que só vivem em ti.
Metas que não comovem a ninguém
senão a ti.
Distraído, trilhas o mesmo caminho
dos teus irmãos de rebanho que,
em fila ruminosa,
acumulam-se nas covas
em pilhas e pilhas
de ossos.

domingo, 13 de novembro de 2011

Duas Trovas

Oh Morro, tu és Careca
e amante da beleza,
pois foi na esquina d'América
que beijaste A Ponta Negra
                            (2010)


                                                    Para mim latiu um cão
                                                    e buscou-me o calcanhar.
                                                    Escorreguei, mas, no chão,
                                                    mordisquei-lhe a jugular.
                                                                               (2011)

sábado, 12 de novembro de 2011

Bom dia, boa noite

Numa esquina.

-Estranho Conhecido, por que a pressa?
Sempre nos vemos, de passagem, estranho.
Na mesma esquina - bom dia - na mesma praça - boa noite, entra ano sai ano.
Mas agora, Estranho conhecido, só lhe vejo com as mãos nos bolsos.
Não mais sorri nem cumprimenta.
Não me aperta a mão, apressado.
Desconhece-me?

-Não, estranho familiar.
Sei onde mora e onde atende:
Rua do Contorno, 81 e Vargas 1 milhar,
respectivamente.
Se tenho faltado com o compromisso de esquina, e de praça, escondendo as mãos
é porque, agora, as tenho em garra.
Se não lhe mostro os dentes
é porque os tenho em gume.
Se já não me ouve a voz
é porque uivo, por descuido.

-Se lhe desperto o Lobo, Estranho Conhecido,
já não precisamos nos falar.

Seguem. Cada um seu caminho.

Rua do Contorno, 81.
O Estranho Conhecido bate na porta.
É recebido por uma Loba:

-Por que demorou?
Quando a esperar estou
imagino se, além,
o porvir, que já tardou,
por mim me espera também.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Por um triz

Passos na areia
ao largo de cacos de vidro
escondidos

Braçadas no mar
ao largo de caravelas
discretas

Pisadas no fundo
ao largo de pedregulhos
agudos

Descanso na sombra
ao largo das bombas
que alhures, em um país distante,
explodem em hecatombes


Sol da meia-noite

Mesmo na cama
no frio noturno
no quarto escuro
de banho tomado
a luz que foi
ao meio-dia apanhada
brilha na pele
a doer queimada

Rol

Manga
Leite (pó e longa vida)
P. higiênico
Detergente
Banana prata madura (faltando)
Maçã
Cigarro (decidi parar)
Café
Pão (não tinha novo)
Fralda
Suco
Guardanapo
Jornal (decidi parar)

Domingo

Visitas. Família à mesa.
A velha mira a cabeceira vazia. Devaneia:
Sal na mesa.
-Quando é que ele volta?
Calor.
-Não mamãe... papai não vai mais voltar, lembra?
Conversas paralelas.
-Ah... neurisma.
Estalo de panelas.
-Foi um aneurisma.
Ensaiou-se uma lágrima.
Mas o filho da puta tinha que ir antes de mim?

Tosse, tosse
silêncio.