Alguma Literatura

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sábado, 14 de março de 2015

BRAVAS AVES



Canários voando sobre o pano de fundo de um céu de janeiro, às vezes, basta isso para nos alentar se nos pesa uma lágrima não derramada.
Imaginemos, agora, esses mesmos pássaros presos em um auditório, a procurar uma saída, inexistente, na luminosa claraboia. Triste espetáculo a eclipsar o discurso do político tolo.
Nos dois casos, sabemos que eles morrerão, mas só no primeiro nos deleitamos com sua vida; só no segundo lamentamos, por antecipação, sua morte.
Se todos os seres são, a um só tempo, viventes e morituros; então por que em certos contextos nossa sensibilidade capta apenas uma dessas dimensões?
Seriam aquelas reações (ora encanto, ora desencanto) arbitrárias?
Ora, os viventes carregam sua morte consigo. Inafastável bomba-relógio em regressiva contagem. A leveza das asas em voo aberto apenas nos impede de ouvir o trabalhar do seu maquinismo.
De outro lado, os morituros também gozam a vida e experimentam os prazeres almejados, ou os que calharam de aparecer. Ou aqueles e mais esses; ou, ainda, parte daqueles e parte desses em infinitas combinações. A proximidade de sua morte, quando muito, desbota as cores de sua alegria, não as apaga.
Ainda assim, seria absurdo se aquelas reações fossem invertidas.
Talvez devamos voltar nossa atenção não para o que há de comum, mas para o que distingue as duas situações, o que nos fornecerá a seguinte explicação óbvia. O primeiro quadro parece-nos bom porque nele vemos seres livres e que, além disso, possuem um dom que parece ser a própria essência da liberdade: o de voar. Já no segundo, vemos seres únicos que apenas se igualam na sua falta de liberdade.
E ao submetermos esse ponto a uma análise mais detida, encontraremos certos aspectos que talvez ajudem-nos a entender o especial desconforto da cena dos canários presos na claraboia.
É que eles nutrem a esperança, que sabemos vã, de se safar fazendo algo que, de acordo com sua experiências anteriores, deveria ser infalível: voar para o alto, em direção à luz. Esse comportamento instintivo, em outros contextos uma vantagem, aqui é uma pena de morte, imposta igualitariamente a todos do bando. Tal como se passa com o anzol, não é o temor servil, mas o desejo de libertação que garante a eficácia dessa prisão, conduzindo ao caminho da servidão. Como entenderiam que, para se libertar, precisariam renegar a luz e voar para baixo em direção à porta por onde entraram, levados pela curiosidade ou, mais provavelmente, pela fome?
É, arrisco dizer, sua persistente expectativa de liberdade, atestada pelo contínuo chocar-se com o vidro e pelo bicar e sambar contra a luz, que nos dói.


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