Alguma Literatura

Alguma Literatura

domingo, 25 de junho de 2023

CAPTCHA

 


 


É tamanho o meu enfado

Em frente ao computador

Que até cogito admitir

Sim, Captcha, sou um robô.

 

E me sai tão automático

O “Olá” e o “Por favor”

Que bem posso confessar

Sim, Captcha, sou um robô.

 

Mesmo os veios de silício

Desse meu processador

Cantam à noite em uníssono:

“Como dorme esse robô”.

 

Desconfio que as engrenagens

Pulsam no despertador

Ansiando por gritar

“Acorda logo, robô”.


segunda-feira, 20 de junho de 2022

O Louco dos Dragões

 


Como passar por adormecidos dragões

Roncando tão alto quanto a chuva cerrada?

Visíveis sob o raio, surdos ao trovão

Um ressona fogo, o outro não teme nada.

Na discrição se pode buscar salvação

Ou se pode gritar-lhes a plenos pulmões:

“Sumam, ou lhes ensinarei umas lições!”

O da direita de ouro se alimenta

O da esquerda, de miséria e padecer

No meio, o viajante vai em marcha lenta

Só um fantoche nesse jogo de poder.

 

Mas tal solução é bem tola e arriscada

Pois a ordem poderia não ser cumprida

E se nos devorassem as feras despertas

Furiosas por terem a sesta interrompida?

Melhor seria buscar escamas abertas

Nas suas armaduras fortes, mas trincadas

Para com boa espada dar-lhes estocadas.

O de um lado ostenta espada sangrenta

O outro está disposto a matar ou morrer

O andarilho encharcado segue em marcha lenta

Só mais um peão nesse jogo de poder.

 

Podemos acordá-los e ocultamente

Nas trevas só esperar que voem dali

Quem sabe em busca de mais tranquilas paragens

Ou que eles caiam lutando entre si.

Mas também podemos procurar por passagens

Que contornem ao largo os dois dragões dormentes

Se é dado evitar, por que bater de frente?

Um, só dos meus amigos devorou setenta

O outro, tantos que nunca vou esquecer

E na chuva o caminhante não mais aguenta

Ser um joguete nessa luta de poder.

 

Não posso demorar colhendo opiniões

Dormirei aqui sob as asas, entre as presas

Recostado às garras, onde sopra o ar quente.

As pessoas que me virem, dirão surpresas:

“Quem seria tão corajoso ou demente

Quem jamais em suas perfeitas condições

Cogitaria de dormir dentre os dragões?”

Esse é tal qual uma ferida purulenta

Aquele não fica atrás, no meu parecer

Mas quem ia no meio fugiu da tormenta

E foi se aninhar entre os monstros do poder.

 

(07-02-2022)

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Filho da minha mãe

 



Quando via, em clínicas médicas, adultos acompanhando pais idosos e notava, pelo tom da voz do filho, pelo modo como eles conduziam e controlavam o idoso, ou até mesmo pela contida (ou nem tanto) irritação com a demora e as deficiências do serviço, irritação essa que comumente acabava transbordando e respingando no idoso, quando notava, repito, por esses e outros indícios que o filho se enxergava como um pai do seu pai, duas sensações me ocorriam: primeiro, eu me sentia mal pelo filho, porque entendia que a situação de quem é pai do próprio pai não é muito diferente da do órfão. E depois, eu me sentia feliz por nunca ter sido chamado pela doença ou coisa parecida a assumir o ingrato ofício de ser um pai para o meu pai ou para minha mãe.

Ah, minha mãe! Tenho tido a felicidade de não a ver decair e minguar nas garras aquilinas da senilidade. Isso, no entanto, é apenas metade da explicação para o fato de eu continuar sendo, com o perdão da redundância, filho da minha mãe. A outra parte da explicação é a seguinte: minha mãe é uma pessoa especialmente sábia. Não estou falando que ela é esperta, como os mais sagazes dos homens de negócios; ou que ela é uma fonte enciclopédica de fatos, datas e nomes, como os mais inteligentinhos dos menininhos que se sentam na primeira fileira da sala e que, com prontidão, respondem qual é a capital da Dinamarca ou conjugam verbos em latim (minha mãe, por sinal, tem horror a criancinhas sabichonas); não. Minha mãe é sábia. Como toda pessoa sábia, ela é irritantemente humilde e elegantemente discreta. Humilde, porque a sabedoria começa com um autoconhecimento, e quem conhece a si mesmo, compreende seus limites e insuficiências. Quem, ao espelho, tal como os “príncipes” do Poema em linha reta, só é capaz de contar virtudes, claramente precisa de um espelho novo. E a sabedoria é discreta com elegância, porque ela não decide, de antemão, esconder-se timidamente como o pusilânime, ou mostra-se espalhafatosamente como o exibicionista. A sabedoria simplesmente quer acertar. E, por isso mesmo, às vezes vai aparecer; e às vezes não. E ao aparecer, não se pavoneia; ao esconder-se, não rasteja.

Ah, minha mãe! 1,45m de sabedoria e sensatez. Nunca tive, ou pretendi ter, qualquer ascendência sobre minha mãe. Não lhe dou conselhos, mas os peço. Certa vez, uma irmã, perto dos seus 25 anos, perguntara-lhe: “Será que eu já sou adulta?”; “Já que você pergunta, tudo indica que não”. Quando estávamos em idade escolar, era comum termos diálogos como o seguinte: “Mãe, o que é supérfluo?”; “Pegue aqui o dicionário. Procure e descubra”. Ou, no supermercado: “Mãe, como se escolhe maçã?” “Você já sabe escolher!”; “Sei?”; “Você escolhe para comer?”; “Escolho”; “É a mesma coisa. Você comeria essa aqui?” – pegou uma maçã feia que já estava no saco – “Não!”; “Então tire do saco”.

Em um dos seus livros, William Douglas sugere que nas questões discursivas de concursos públicos da área jurídica o candidato tenha em mente “cinco mulheres”: a constituição, a lei, a doutrina (é assim como, no meio jurídico, de modo cafona, designamos a literatura técnica especializada), a jurisprudência e, para a surpresa do leitor, “a sua mãe”. A ideia é garantir que a resposta desenvolva sua argumentação a partir das normas pertinentes, do parecer dos especialistas e das decisões dos tribunais, mas sem perder de vista a opinião que uma pessoa sensata, mas que não é da área, teria a respeito do assunto. Afinal, se a conclusão a que o candidato chegou vier a se afastar muito do senso comum, algo a mais deverá ser dito, nem que seja para “convencer sua mãe” a respeito do acerto da solução proposta. Nunca tive dificuldades para fazer esse exercício, que ponho em prática até hoje no trabalho. Quando me deparo com problemas intrincados de direito, costumo arrematar o estudo me perguntando: o que minha mãe pensaria disso tudo?

“A injeção é assim; dói um pouquinho, mas quando você acha que vai doer mais, já acabou”. Assim ela me preparou para minha primeira injeção, ilustrando a explicação com um leve beliscão. Como resultado, nunca tive qualquer problema com agulhas. Vejo injeções como pacotes de dor. É verdade que alguns podem ser maiores do que outros (benzetacil entra rasgando!), mas todos eles têm um começo, um meio e um fim. Desde essas instruções, passei a ver uma injeção como uma realidade sensorial e não como uma realidade física. Creio que as pessoas que têm medo de agulhas estão fixadas na chocante realidade física da injeção: a de que um objeto mais denso do que nossa carne, entrará no nosso corpo do mesmo modo como uma faca quente corta a manteiga. Algumas poucas palavras acompanhadas por um beliscão me livraram desse problema para o resto da vida.

Compreendi a gravidade do seu quadro clínico ao ver a expressão de dor no seu rosto ao enfrentar a agulha que injetou o contraste necessário à realização da tomografia.

“Amanhã por essa hora, tudo terá terminado”. Era o que me dizia ao me ver aflito por ter que envidar esforços na realização de uma tarefa dura e cansativa. Hoje entendo que nesses momentos de tensão ou de desconforto, todo o incômodo derivava de um excesso de presente. E esse excesso de presente amplificava, na minha mente, a dor que então sentia. O raciocínio, então, acabava sendo o seguinte: “Se é difícil agora, então em poucas horas será insuportável, e depois de um dia, será meu fim”. No entanto, todos que realizaram feitos difíceis (desde correr uma maratona até escrever um livro) podem garantir que após o ápice do sofrimento se segue uma espécie de platô no qual, por força de uma vontade obstinada, poderemos abstrair todos os incômodos para seguir perseverando com o propósito, e que ao final, com a conclusão da tarefa, virá uma grande satisfação. Era esse prêmio, que não está no hoje, mas no amanhã, que minha mãe colocava diante dos meus olhos ao dizer que em um dia (uma semana ou um mês) tudo estaria terminado. E não sendo dado, ao menos não naturalmente, a adiar as recompensas (sou muito mais parecido com a cigarra do que com a formiga da fábula), compreendo que precisava, e que preciso, ser lembrado constantemente do prêmio reservado aos que perseveram.

Faz parte da sabedoria da minha mãe não tratar os filhos com igualdade. Seus filhos somos três: uma sanguínea, uma colérica e um de temperamento melancólico. Como dar aos três os mesmos conselhos? A única igualdade que observo é uma igualdade no amor e nos elogios. E nesse ponto, creio que não falo só da minha mãe, mas de todas elas. No geral, é muito mais fácil conseguirmos um elogio de um amigo, ou até mesmo de um mero conhecido, do que de nossa mãe, que mesmo nos amando por aquilo que nós somos, nunca perde de vista tudo aquilo que poderemos ser, se nos empenharmos mais. Além disso, dificilmente um filho se julgará o preferido. O mais amado, para cada um dos rebentos, é sempre outro. O que mostra a prodigalidade com que a mãe distribui o amor entre os seus. É tanto amor, que cada um dos irmãos tem motivos para invejar os demais. Elogios pagos com centavos; amor, com bilhões.

Sou filho da minha mãe. E nem a morte poderá desfazer esse vínculo. A morte? O que minha mãe pensa da morte? Nunca chegamos a ter uma conversa filosófica e densa sobre a finitude humana. Nunca, com exceção do dia no qual ela completou 50 anos: 04-10-1995. Eu, então, um adolescente. De algum modo, a conversa chegou à seguinte constatação: provavelmente, ela não viveria mais 50 anos. Diante desse dado (ou dessa probabilidade), ela disse apenas que isso não a preocupava, pois o seu foco era o de viver cada dia. O desconforto de minha mãe levou-me a concluir que o tópico era especialmente difícil para ela. Lembro que, mesmo sendo uma exímia nadadora, minha mãe sempre tratou o mar com muito respeito. O que é compreensível. Afinal, existe algo de belo e, ao mesmo tempo, de terrível no oceano. Do alto da ladeira do sol, em um lance de vista, enxergamos algumas dezenas de Km3 de água; o suficiente para engolir pessoas, carros, casas, prédios, enfim, cidades inteiras. E quantos peixes, golfinhos, tubarões e baleias não se escondem ali? Pois bem, é possível que eu esteja prestes a vê-la mergulhar em outro oceano, igualmente terrível, embora menos opaco. Menos opaco, porque o mar esconde suas feras, muitas das quais jamais veremos, mas a morte não esconderá a lembrança das lágrimas que a vi derramar ao ouvir Assum Preto, o sambar fazendo biquinho, a indignação com a política, o sorriso fácil, o escândalo do espirro ou a alegria de ser seu filho.

E agora, sedada na UTI e com uma forma grave de COVID, no que a senhora estará pensando, mãe?

O que a senhora vê nos seus sonhos? Bem sei que sons ouvirá e que imagens verá, se as drogas lhe permitirem ouvir ou ver algo. Sons e imagens que lhe são familiares, depois de uma vida profissional dedicada aos pacientes. Assistindo a esse estranho filme cheio de cortes, a senhora deve se sentir como uma passageira sem qualquer controle sobre o destino ou percurso da viagem. Do lado de cá, os seus filhos também se sentem um pouco assim. Mas no que pensará? Eu sei o que a senhora quer: recuperar-se e voltar para casa. Sou testemunha da firmeza da sua vontade, do empenho disciplinado que dedica na execução das tarefas com as quais se comprometera. Mas isso não me basta para adivinhar seus pensamentos, que me parecem inalcançáveis. Eu já estive na sua posição. Já tive meus pensamentos, ou filhotes de pensamento, encapsulados por um feixe de sensações e vontades. Sensações e vontades que só podiam ecoar através do grito ancestral que é o choro. E a senhora me entendia. O bebê é um livro aberto para sua mãe. Hoje, não posso lê-la, mas confio nos intensivistas, na sua habilidade de lhe entregar aquilo que a senhora precisa, na ocasião e na dose que precisar. Do mesmo modo que a senhora esperou o despertar da consciência nos seus filhos, esses esperam, com o mesmo amor e a mesma paciência, o restabelecimento da sua.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Buenos dias




Ao topar um viandante

Nas margens da rodovia

Caminhando deslocado

Quem o carro pararia

 

No papelão Uruguai

Fez-me ver o que esquecia

Que viver é ir errando

Em alheia freguesia

 

De mil sóis queimada pele

Fez-me ver verdade antiga

Que o sol também se aninha

Nas rugas da minha vida

 

Cabelos densos e negros

Despertou-me nostalgia

Lembrança dos andarilhos

Menos densos que já vira

 

Passos arrastando solas

A quem não comoveria

Tive que parar o verso

A bem dizer-lhe bom dia


sábado, 17 de novembro de 2018

Variação sobre o jovem rico


§ Será que ninguém vê esse fogo que se espalhou e quer consumir casas, árvores, carros e postes? Não enxergam que ele é dado a apagar as palavras dos livros, a emudecer o choro dos bebês, as gargalhadas das crianças e o canto dos bêbados? Ninguém terá percebido que ele tem predileção por arrebatar, mãos quentes e ligeiras, o cenho franzido das mães, a timidez da primeira troca de olhares dos namorados, o silêncio constrangedor das reuniões em família e mesmo os minutos de atraso do mais pontual dos funcionários da loja de departamento? Ou que ele quer converter em cinzas o "boa noite" no elevador, o "tudo bem" na portaria e o "como vai" na esquina?
§ Ontem, não resisti e perguntei à primeira pessoa que encontrei: “Você não vê?” Enquanto nos abraçávamos, ela sussurrou entre lágrimas algumas palavras na língua dos sonâmbulos que só podem ser traduzidas como “Sim, eu vejo”. “Entreguemos – ela prosseguiu – tudo a ele. Sim, pois ele não aceita nada pela metade, e mesmo antes de nascermos já ardia sem se consumir e se espalhava sem se dividir”.
§ Eu concordei, mas com toda serenidade de que dispunha, ponderei que tinha horário marcado com o médico, uma lista de compras e dois boletos a pagar.

quinta-feira, 31 de março de 2016

DISCURSO POLÍTICO: FINALIDADE E INCONGRUÊNCIAS


1.      O QUE OS POLÍTICOS NUNCA DIZEM E PORQUE NÃO O FAZEM.

Os candidatos a cargos no Executivo raramente (ou nunca), procuram as câmeras para dizer algo como: “Agora, precisamos fazer X. Eu posso fazê-lo em Y anos, a um custo de Z dinheiros e com o auxílio de A, B e C. Para colocar esse plano em prática, eu peço o seu voto”.
E há motivos para um discurso nesses moldes ser evitado. Vejamos.
Se estivermos diante de uma medida prática cuja necessidade e justiça são aceitas quase consensualmente, o candidato não terá um produto exclusivo a oferecer, eis que, nesse caso, ninguém ousaria propor não fazer X, ou, quando menos, não fazê-lo já, mas depois. Nesse caso, o defensor da medida seria recebido pela audiência aos bocejos.
Mas e se esse não for o caso, e estivermos diante de uma medida que, sendo polêmica, gera uma acentuada divisão na opinião pública, a opor os visceralmente contrários ao grupo dos defensores entusiasmados, ambos ávidos por engajar os indiferentes e indecisos? Bem, nesse caso, o candidato que defendê-la atrairá a antipatia convicta de parcela do eleitorado, que o receberia com sete pedras nas mãos aonde quer que ele fosse.
Indiferença e rejeição, eis o que, muito provavelmente, espera aquele que apresentar um plano prático a uma assembleia popular. E o político, assim como o adolescente apaixonado, não sabe lidar muito bem com a frieza ou o desprezo do ser amado. Mas tratemos, agora, daquilo que os políticos dizem.

2.      NARRATIVA POLÍTICA.

Só podemos compreender bem um texto a partir da compreensão das intenções do seu autor. E cada vírgula dos discursos políticos tem por finalidade obter a adoração e o engajamento dos eleitores. Desse modo, simplifica demais a questão quem afirma que os políticos querem o nosso voto, pois eles querem muito mais do que isso. Almejam por amor incondicional e comprometimento imediato.
É aí que entra o que chamaremos de “narrativa política”: uma interpretação minimamente verossímil do cenário político, que tem por objetivo conferir aos seus caóticos eventos um sentido que favoreça o projeto de poder de um determinado grupo. Quem a formula, portanto, não pretende apresentar uma descrição objetiva da realidade ou um plano prático de ação, mas ganhar o coração e a mente das pessoas comuns. Invariavelmente, as narrativas políticas se apoiam em ideologias. São essas, para muitos, que conferem validade e confiabilidade àquelas.
Pois bem, a narrativa está para um programa prático de ação do mesmo modo que uma campanha publicitária está para o manual de instruções de um produto. Ela, a narrativa, não se apoia no valor “verdade”, mas no “convencimento”, com a finalidade de obter o engajamento. Um homem que toma a narrativa política por uma descrição objetiva da realidade a amparar um programa concreto de ação, assim, é tão insensato quanto aquele que pretende se manter bem informando a respeito dos produtos disponíveis no mercado confiando, exclusivamente, no que lhe dizem os comerciais de TV. O distanciamento eventual entre a narrativa apresentada no período eleitoral e as medidas práticas adotadas após as eleições, desse modo, embora revoltante, não deveria surpreender a ninguém. Mas seria possível evitar esse engodo? Vejamos.

3.      COMO NÃO SER ENGANADO PELOS POLÍTICOS.

O modo mais seguro de o eleitor evitar ser enganado, é forçando o candidato a sair do âmbito das narrativas para entrar no campo das propostas concretas, através de perguntas muito simples e diretas, tais como: Quais são, na opinião do candidato, os problemas do País (Estado ou Município)? Como o candidato pretende abordá-los? Quais são as pessoas que colocarão esse programa em prática (quem serão os ministros ou secretários)? Quais resultados o candidato espera obter com essa abordagem? Quanto isso irá custar aos cofres públicos? Quando os primeiros resultados virão? Como esses resultados poderão ser mensurados e avaliados?
Essas são perguntas que tiram o candidato da sua zona de conforto e, por isso, eles fugirão delas tanto quanto for possível e retornarão prontamente às narrativas políticas.
Mas há de se registrar que nem tudo o que um político diz pode ser enquadrado no conceito de narrativa, tal como o apresentamos aqui.

4.      COMO DEVEMOS OUVIR UM POLÍTICO.

Muitas vezes, ao discursar, o político simplesmente exprime opiniões, desejos ou formula análises descritivas sobre a conjuntura política. Essas opiniões, esses anseios e essas análises, quando emitidos por alguém experiente que muito viu e muito fez, proporcionam ao estudioso um raro vislumbre das ideias políticas dos atores do jogo do poder, dado que pouquíssimos se animam a apresentar formal e cabalmente uma súmula mais ou menos completa de suas ideias políticas.
 Portanto, a tarefa árdua é a de, ao ouvir um discurso, joeirar o que é narrativa política e o que não é. Nesse ponto, surgem diversas questões.

5.      OS MAIORES ENGANADORES ACREDITAM NAS SUAS MENTIRAS.

Como saber se um político, mesmo um que você encontrou na fila do pão, está no modo palanque? E mais, os políticos sairiam, mesmo durante o sono, desse modo? E, de qualquer modo, seria possível fazer essa distinção simplesmente assistindo ao discurso ou lendo o panfleto em busca de incongruências internas ou sutis inflexões que mostrem que o político não acredita nessa ou naquela proposição? Existiriam, por fim, entre os políticos e militantes alguns que foram enganados pela cúpula do partido, que os convenceu da veracidade de um discurso falso criado sob encomenda?
Essas são perguntas difíceis, mas arrisco afirmar que, por mais bizarro que isso possa parecer, o processo mental que leva alguém a acreditar piamente nas próprias ficções, não importando o quão fantasiosas elas sejam, longe de ser raro, talvez seja muito frequente. Talvez, mesmo os ideólogos e os marqueteiros que, diante de uma folha em branco, criaram a narrativa política mais convincente que puderam imaginar, em um segundo momento, passem a acreditar que não existe nada mais preciso, acurado e verdadeiro do que essa narrativa.
Não parece plausível que as estruturas partidárias sejam formadas por dirigentes cínicos no topo e por militantes crédulos na base. Aqueles empenhados em criar os discursos, mesmo sabendo que eles não representam descrições objetivas da realidade, e esses, enganados por aqueles, prontos para disseminar aos quatro cantos a mais nova narrativa que, quentinha, acabou de sair do forno.
Na verdade, a falsidade e a ingenuidade estão igualmente distribuídas ao longo de toda a pirâmide. Todos estão igualmente empenhados em mentir e em acreditar na mentira de outrem ou na sua própria, desde que isso atenda aos interesses do partido.

6.      OS MECANISMOS DE DEFESA DA MILITÂNCIA DESMASCARADA.

É certo que quando a força dos fatos se fizer sentir e a máscara cair, os peões alegarão sua própria ignorância em sua defesa. Eles sustentarão que foram enganados por uma cúpula formada por psicopatas mentirosos, que abusaram da sua boa-fé. E que eles, os peões, não podem ser censurados por haverem acreditado no seu rei, afinal de contas eles só obedeceram a ordens. Eles, os crédulos peões, nada mais seriam do que inocentes cordeiros enganados por inescrupulosas raposas. Embora, na verdade, nem as raposas sejam tão raposas e nem os cordeiros sejam tão cordeiros, curiosamente, quando se exaure o ciclo de poder de um grupo que disseminou a mentira, semelhante linha de defesa tende a ser bem aceita tanto pelos ex-adeptos do partido derrotado como pelos líderes do novo partido que se saiu vitorioso. E a explicação para isso é muito simples: Essa medida (a condenação da cúpula conjugada com a absolvição da massa) é a única que deixa os ex-crentes da fé derrotada em paz com suas consciências ao mesmo tempo em que preserva o dogma da vox Populi, vox dei. As consciências estarão apaziguadas porque a denúncia da perversidade do líder oculta a parcela de maldade que se aninhava no coração de cada um dos seus seguidores; ao passo que o dogma da sacralidade da opinião da maioria restará preservado porque será apresentada a seguinte racionalização: É certo que onde quer que uma maioria decida algo, ela decidirá bem, a não ser que tenha sido enganada sordidamente por manipuladores das multidões.
Mas tratemos da narrativa política petista.

7.      “AZELITE” PETISTA

A narrativa política petista apresenta o jogo político como uma luta do bem contra o mal; dos pobres contra uma elite branca e opressora.
Esse credo não resiste ao mais singelo teste. Como explicar, por exemplo, que essa tal "elite branca odienta e antipetista” hoje corresponderia a 70% dos eleitores? Como explicar o uso, já provado judicialmente na ação criminal do mensalão, da máquina estatal para desvio de recursos públicos em benefício do financiamento de um projeto de poder? Como explicar o conluio, que tem sido esmiuçado na operação Lava Jato, do partido com as maiores e mais ricas empreiteiras do país? Ou a propagação do petismo mesmo no seio da elite do país?

Nesse ponto, cabe ressaltar que não é de hoje que o petismo conta com o apoio de relevantes setores de nossa elite acadêmica, artística, jornalística e empresarial. Ou a elite deixa de ser elite a partir do momento em que simpatiza com o PT?

domingo, 23 de agosto de 2015

CONSIDERAÇÕES JURÍDICAS SOBRE O IMPEACHMENT.




CONSIDERAÇÕES JURÍDICAS SOBRE O IMPEACHMENT.



I. Juízo político x juízo jurídico: Uma problematização.
1. É corrente, no meio acadêmico, a seguinte máxima: o juízo sobre o cabimento ou não de um impeachment é político; ao passo que o juízo acerca da caracterização ou não de um crime comum é técnico (ou jurídico ou, ainda, técnico-jurídico).
2. Essa afirmação, que muito se repete, mas sobre a qual pouco se reflete, foi sintetizada na seguinte intervenção do hoje vice-presidente Michel Temer durante os trabalhos da última Assembleia Nacional Constituinte:

“Juiz realmente aplica o Direito como se fosse quase que uma ciência exata, ou seja, diante dos fatos e das provas, não há como fugir a uma determinada sentença, a uma determinada decisão. Já os chamados crimes políticos, como V. Ex.ª está muito bem ressaltando, dependem, muitas vezes, do problema da conveniência e da oportunidade. Muitas e muitas vezes é possível, Sr. Presidente, no caso de um impeachment de um presidente, de um impedimento de um governador ou de um prefeito municipal, que, embora os fatos levem à decretação do impedimento, à conveniência política não se determine aquela responsabilização em definitivo”.
(Diário da Assembleia Nacional Constituinte. Ano I, no 87. De 2 de julho de 1987. P. 439.)

3. Particularmente, somos céticos quanto a essa dicotomia entre, de um lado, os ditos juízos políticos e, do outro, os técnicos. E o somos porque ela pinta caricaturas irreconhecíveis, garranchos que não representam, nem de longe, as tarefas desempenhadas pelo intérprete do direito.
4. Na verdade, nem o primeiro é de tal modo arbitrário a ponto de se poder afastar a responsabilização política do governante mesmo quando os fatos apontam para a caracterização de um crime de responsabilidade; nem tampouco o segundo é puramente técnico “como se fosse uma ciência exata”.
5. Onde quer que se aplique o direito, essa atividade sempre demandará pitadas de elucidação de fatos, punhados de ponderação de valores, porções de análise de normas e, por fim, boas doses de prudência na apreciação desses mesmos fatos, valores e normas.
6. Em suma: nos dois casos, simplifica grosseiramente a aplicação do Direito quem descreve o “juízo técnico” como o reino absoluto dos fatos ou o “juízo político” como uma área de pura conveniência e oportunidade.
7. Dito isso, passaremos a cuidar das seguintes questões:
1ª) A Constituição Federal (CF/88) trata explicitamente da possibilidade de um crime de responsabilidade cometido durante o primeiro mandato, e cujo conhecimento só se tornou público na vigência do segundo, dar ensejo ao impeachment?
2ª) A norma do § 4º do art. 86 CF/88 se aplica à responsabilização política (impeachment) do Presidente da República? e
3ª) Decorreria da norma do § 4º do art. 86 CF/88  que seria vedado impeachment na hipótese descrita na 1ª questão?
É o que faremos a seguir.

II. A primeira questão.
8. É preciso reconhecer, de saída, que a CF/88 não trata explicitamente da situação descrita na questão. E é justamente a omissão do texto constitucional que faz dessa uma contenda tormentosa.
9. Mas também a constituição de 1891 era silente quanto à possibilidade de crime de responsabilidade praticado no primeiro mandato possibilitar ou não o impeachment do Presidente reeleito.
10. De todo modo, eis como, nos idos de 1918, Carlos Maximiliano, que depois seria nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), veio a se pronunciar sobre o tema à luz daquela constituição, a primeira da república, e da jurisprudência norte-americana:
“Os juízes Bernard, de Nova York, e Hunnell, de Wisconsin, e o Governador Butler, de Nebraska, reconduzidos em seus cargos, sofreram impeachment pelas faltas cometidas quando exerceram anteriormente as mesmas funções. Não encontraram eco os seus protestos contra a competência do tribunal político. A exegese é correta: o fim do processo de responsabilidade é afastar do Governo ou do Tribunal um elemento mau: não se instaura contra o renunciante, porém atinge o reconduzido”
(Comentários à Constituição Brasileira de 1891. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005 – Ed. Fac-similar. p. 339)





11. Mas é evidente que a posição de um único jurista, em que pese notável, não basta para fechar a questão. E não basta, principalmente, porque não havia no texto por ele interpretado norma equivalente à que consta no § 4º do art. 86 da CF/88, da qual trataremos a seguir[i].
12. De qualquer maneira cabe indagar: Não teria a vitória nas urnas o efeito de “absolver” eventual crime de responsabilidade praticado durante o primeiro mandato? Essa singelíssima pergunta oculta, na verdade, um problema grave e de difícil solução. É que ela opõe dois valores igualmente caros à constituição: o princípio democrático e o princípio republicano. Por isso, é impossível que se apresente uma resposta ao mesmo tempo curta e satisfatória.
13. No entanto, mesmo correndo o risco de sermos reducionistas, temos que ressaltar que aqui tratamos, como já dito na formulação da 1ª questão, de hipótese na qual crimes de responsabilidade foram praticados e acobertados ao longo do primeiro mandato. Portanto não vemos como, nessas circunstâncias específicas, o voto do eleitor possa haver “absolvido” o governante de um crime do qual ele (o eleitor) sequer teve prévio conhecimento.
Prosseguimos.

III. A segunda questão.
14. O art. 85 da CF/88 prevê os crimes de responsabilidade do Presidente da República.
15. Já o art. 86 fixa a competência para julgamento do Presidente da República, e as normas procedimentais a serem seguidas tanto nos crimes de responsabilidade como nos comuns.
16. É nesse art. 86, no seu § 4º, que está a cláusula em análise. Eis o teor literal do dispositivo, o qual chamaremos de (T):
(T) O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.
17. O que pretendemos responder nessa seção, recapitulamos, é se a regra do art. 86 § 4º abrangeria os crimes comuns e os de responsabilidade, ou apenas os comuns. Ou, dizendo de modo mais explícito, objetivamos responder se o art. 86 § 4º seria uma cláusula de imunidade temporária à instauração de processos de cunho extrapenal (cível ou político-administrativo) ou apenas penal.
18. Pois bem, o Plenário do STF já teve a oportunidade de asseverar que, em face do seu caráter excepcionalíssimo, essa regra não alcança a responsabilização extrapenal do Presidente da República. Tratar-se-ia, assim, de uma imunidade temporária apenas à persecução penal:
“A norma consubstanciada no art. 86, § 4º, da Constituição reclama e impõe, em função de seu caráter excepcional, exegese estrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal. O presidente da República não dispõe de imunidade, quer em face de ações judiciais que visem a definir-lhe a responsabilidade civil, quer em função de processos instaurados por suposta prática de infrações político-administrativas, quer, ainda, em virtude de procedimentos destinados a apurar, para efeitos estritamente fiscais, a sua responsabilidade tributária”.
(Inq 672QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 16-9-1992, Plenário, DJ de 16-4-1993.)
19. Portanto, até aqui, a posição do Supremo Tribunal Federal é a de que não é possível extrair da regra do art. 86 § 4º uma cláusula de imunidade temporária à instauração de processos de cunho cível ou político-administrativo. Ou seja, o dispositivo em questão seria uma cláusula de imunidade temporária à instauração de processos criminais, apenas.
O que nos leva à questão seguinte.

IV. A terceira questão.
20. Resta-nos avaliar, ainda, a hipótese de que decorreria do § 4º do art. 86 da CF/88 que, em caso de reeleição, seria inviável constitucionalmente a suspensão do mandato do Presidente reeleito por atos praticados no mandato anterior.
21. É dizer, devemos responder se do texto desse dispositivo (T) podemos validamente extrair a seguinte norma, que chamaremos de (N):
(N) O Presidente da República reeleito, na vigência de seu segundo mandato, não pode ser responsabilizado politicamente por atos praticados no exercício do primeiro.
22. Ora, o problema mais evidente dessa hipótese é que quando da redação do texto do § 4º do art. 86 (que, como se sabe, já integrava o texto original da Constituição) não havia, ainda, a possibilidade e reeleição do Presidente da República (o que só veio a acontecer com o advento da emenda 16/97).
23. O segundo problema é o seguinte: Ao sustentarmos que (N) emanaria de (T), estamos, na prática, a expandir o alcance de dispositivo que, como visto no precedente do STF, exige uma interpretação estrita; uma interpretação que não se afaste em demasia do seu texto literal.
24. E o terceiro e mais grave problema que o intérprete cria ao derivar (N) de (T) é que, com isso surgiria, ao menos em um caso muito específico, um refugo indesejado: uma hipótese na qual o Presidente da República seria irresponsável por seus atos.
Explicamos.
25. Os crimes de responsabilidade que, acobertados ao longo do primeiro mandato, só tenham vindo à tona na vigência do segundo, tornar-se-iam inalcançáveis ao processo de impeachment e, portanto, ficariam impunes do ponto de vista político-administrativo.
26. É o que chamaríamos de irresponsabilidade relativa, pois, nas hipóteses em que esses atos também venham a configurar crimes comuns, o ex-Presidente ao menos poderá, findo o mandato, responder criminalmente por eles.
Mas essa impunidade/irresponsabilidade relativa pode até mesmo se converter em absoluta.
27. É que nas hipóteses nas quais, embora se configurando como crime de responsabilidade, o ato praticado não se enquadra em nenhum tipo penal comum, teríamos um ato contra o direito que não provocaria qualquer consequência política ou criminal: um verdadeiro crime perfeito.
28. E por que essa seria uma consequência indesejada? Porque a irresponsabilidade (relativa ou absoluta) do mandatário maior do país implicaria uma afronta ao princípio republicano.
É do que trataremos nas seções seguintes.

V. O princípio republicano.
29. Devemos começar definindo o que vem a ser uma república.
30. E dada a influência que o constitucionalismo norte-americano teve na construção de nossa experiência republicana, mostra-se pertinente que recorramos a algumas fontes doutrinárias daquele país.
31. Eis, a propósito, o verbete “República” no Black’s Law Dictionary:
República: Um sistema de governo no qual o povo detém o poder soberano e elege representantes que exercitam esse poder. Ela se diferencia, por um lado, de uma democracia pura, na qual o povo ou a comunidade, como um todo organizado, maneja o poder soberano de governo, e, por outro, do governo de uma pessoa (como um rei ou um ditador) ou de uma elite (como em uma oligarquia, aristocracia ou junta).
32. E James Madison assim definiu a república:
“Governo que aufere todos os seus poderes direta ou indiretamente da grande massa do povo, e é exercido por pessoas que conservam as suas funções de modo precário, por tempo limitado ou enquanto procedem bem”.
(The Federalist. Indianapolis: Liberty Fund, 2001. p. 194. Traduzimos)
33. Nessas passagens se sobressaem três aspectos que dão conteúdo e forma ao princípio republicano:
1) A escolha, por parte do povo, de um governante que embora não detenha, exercitará o poder soberano. Nesse ponto a república se distingue de uma democracia direta.
2) A transitoriedade do mandato desse governante. Nesse ponto ela se distingue de uma ditadura familiar.
3) A responsabilidade desse mesmo governante. Nesse ponto, por fim, a república se distingue de um império absolutista, no qual The King can do no wrong. Numa república, portanto, todos estão sob o império da Lei e sujeitos às suas consequências.
34. Desse modo, podemos afirmar que uma república é uma forma de governo na qual ao caráter eletivo e temporário dos mandatos dos governantes, soma-se a possibilidade de esses serem responsabilizados por seus atos.

VI. A irresponsabilidade.
35. Nesse contexto, a irresponsabilidade é uma doença, porque antirrepublicana.
36. E se trata de doença que, nas repúblicas da América Latina, tem ganhado ares de epidemia.
37. Aqui cabe trazer ao debate as seguintes linhas de Rui Barbosa escritas em 1920, nas quais, além de apresentar seu libelo contra o sistema presidencialista, ele toca na própria essência do caudilhismo latino-americano:
“Só onde os povos se acostumaram a tomar contas aos seus administradores, e estes a dar-lhas, é que os homens públicos apreciam as vantagens dos regimes de responsabilidade.
Nestes aleijões constitucionais da América Latina, como o Brasil, nestes míseros tolhiços de repúblicas, que, tais qual o pau torto de nascença, tarde, mal ou nunca se endireitam, o ideal dos governos está na irresponsabilidade.
Essa intransigência em que o nosso mundo político se abrasa pelo sistema presidencial, negando pão e água a qualquer traço de ensaio das formas parlamentares, não se origina, realmente, de nenhum dos motivos assoalhados, não tem nascença em considerações de ordem superior, não vem de que os nossos políticos bebam os ares pela verdadeira prática republicana. Não, senhores. Pelo contrário, o de que se anda em cata, é só da irresponsabilidade na política e na administração.
Na irresponsabilidade vai dar, naturalmente, o presidencialismo. O presidencialismo, senão em teoria, com certeza praticamente, vem a ser, de ordinário, um sistema de governo irresponsável”.
(A Imprensa e o dever da verdade. IN Discursos, orações e conferências. Vol. I. São Paulo: Livraria editora Iracema. P. 37-38.)





38. Que nossos homens públicos ainda hoje (em plena sexta república) almejem por irresponsabilidade na política e na administração, não será problema algum, desde que o sistema refreie esse apetite imperial.
39. Eis porque casos de irresponsabilidade, se existentes em um sistema jurídico que se pretende republicano, devem ser sempre interpretados restritivamente, de modo a não serem ampliados; e se não existem, como é o caso do Brasil, não devem ser criados pelo intérprete.
40. E eis porque, se não pode ser visto como uma panaceia, o impeachment também não pode ser tido como um gesto suicida de implosão do sistema. Trata-se, sim, da única via institucional de que dispõe o presidencialismo para chamar à responsabilidade o Presidente eleito, contornando crises de confiança e preservando a república.

VII. O cupim da república.
41. Mas a interpretação que extrai (N) de (T) não é apenas antirrepublicana, como se isso fosse pouco, mas também contrária à moralidade pública.
42. Pois nada pode ser mais desmoralizante para uma nação do que a corrupção impune. E também esse dado deve ser levado em conta pelo intérprete da constituição.
43. Sabemos que nos tempos atuais, o apelo à moralidade tem perdido, para alguns, muito do seu impacto argumentativo. Esse fenômeno, que deriva aparentemente de um clima de relativismo moral e de um descrédito generalizado com relação a todos os políticos, todavia, não habilita o aplicador do direito a desconsiderar princípios explicitamente previstos na CF/88. Esse é o caso do princípio da moralidade na administração pública (art. 37 da CF/88).
44. As seguintes palavras do Dr. Ulysses Guimarães, proferidas no discurso de encerramento dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, atestam a importância desse princípio:

“A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam.
Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública”.
(Diário da Assembleia Nacional Constituinte. Ano II, no 306. De 2 de setembro de 1988. P. 323.)





45. As razões lançadas nas duas últimas seções nos habilitam a não só rechaçar que (N) possa decorrer validamente de (T), como também a apresentar a solução que parece-nos mais harmônica com os princípios em jogo. Por isso, a seguir, não nos limitaremos a responder as três questões postas, mas também apresentaremos uma quarta conclusão.
Vejamos.

VIII. Uma advertência e as respostas a que pudemos chegar.
46. Como já dito no parágrafo 5, onde quer que se aplique o direito, essa atividade sempre demandará pitadas de elucidação de fatos, punhados de ponderação de valores, porções de análise de normas e boas doses de prudência na apreciação desses fatos, valores e normas.
47. No presente artigo, nós nos debruçamos sobre as questões apresentadas no parágrafo 7 à luz das normas e princípios da CF/88. Nada dissemos sobre fatos empíricos. Por isso, a utilidade que o presente estudo pode vir a ter pressupõe a apuração minuciosa dos fatos pretensamente caracterizadores, em uma dada situação concreta, de crimes de responsabilidade.
48. Seguem as conclusões:
1ª) A CF/88 não trata explicitamente da possibilidade de um crime de responsabilidade cometido durante o primeiro mandato, e cujo conhecimento só se tornou público na vigência do segundo, dar ensejo ao impeachment.
2ª) A norma do § 4º do art. 86 da CF/88 não se aplica ao impeachment do Presidente da República.
3ª) Não decorre da norma do § 4º do art. 86 CF/88  que seria vedado impeachment na hipótese descrita na 1ª questão.
4ª) Decorre do princípio republicano e do princípio da moralidade que cabe impeachment sempre que se caracterize um crime de responsabilidade cometido durante o primeiro mandato, mas que só veio a se tornar público na vigência do segundo.

IX. Referências.
BARBOSA, Rui. A Imprensa e o dever da verdade. IN Discursos, orações e conferências. Vol. I. São Paulo: Livraria editora Iracema.
Black's Law Dictionary 8th ed. (West Group, 2004), Bryan A. Garner, editor.
MADISON, James Et alii. The Federalist. Indianapolis: Liberty Fund, 2001.
MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à Constituição Brasileira de 1891. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005 – Ed. Fac-similar.



[i] Embora Carlos Maximiliano estivesse ciente da linha interpretativa que, firmada no Direito Constitucional norte-americano, viria a ser incorporada por nossa constituição. É o que se depreende da seguinte passagem: “Prevaleceu a doutrina seguinte: O presidente, ainda que tenha cometido assassínio, não pode ser detido, preso ou constrangido em sua liberdade de locomoção, enquanto estiver no exercício do cargo”. (Ob. Cit. P. 545).