§ Será que ninguém vê esse fogo que
se espalhou e quer consumir casas, árvores, carros e postes? Não enxergam que
ele é dado a apagar as palavras dos livros, a emudecer o choro dos bebês, as
gargalhadas das crianças e o canto dos bêbados? Ninguém terá percebido que ele
tem predileção por arrebatar, mãos quentes e ligeiras, o cenho franzido das
mães, a timidez da primeira troca de olhares dos namorados, o silêncio
constrangedor das reuniões em família e mesmo os minutos de atraso do mais
pontual dos funcionários da loja de departamento? Ou que ele quer converter em
cinzas o "boa noite" no elevador, o "tudo bem" na portaria
e o "como vai" na esquina?
§ Ontem, não resisti e perguntei à
primeira pessoa que encontrei: “Você não vê?” Enquanto nos abraçávamos, ela
sussurrou entre lágrimas algumas palavras na língua dos sonâmbulos que só podem
ser traduzidas como “Sim, eu vejo”. “Entreguemos – ela prosseguiu – tudo a ele.
Sim, pois ele não aceita nada pela metade, e mesmo antes de nascermos já ardia
sem se consumir e se espalhava sem se dividir”.
§ Eu concordei, mas com toda
serenidade de que dispunha, ponderei que tinha horário marcado com o médico,
uma lista de compras e dois boletos a pagar.